quarta-feira, 1 de outubro de 2008

HÓSPEDES - Terceira e (Eba!) Última Parte

Na segunda de manhã, Susana acordou mais atrasada para o trabalho do que de costume. Rapidamente, mas não de forma lá muito eficiente, ela se maquiou, se penteou, escolheu as roupas menos amassadas que pôde encontrar fora de seu quarto (onde ela não ousou entrar) e saiu, pulando etapas básicas como a de um bom café-da-manhã e a escovação dos dentes, mas lembrando-se de coisas essenciais, como o lap top. Não havia som nenhum vindo de dentro do quarto onde suas “visitas” haviam passado a noite, mas o sermão iminente que ela sabia que ouviria de seus superiores tirou qualquer curiosidade de checar aquele cômodo. Então, lá se foi Susana.
Não foi um dia muito agradável no trabalho. Depois da advertência pelo atraso e pela precariedade do relatório que deveria entregar, Susana teve problemas de concentração o dia inteiro. Era como se alguma coisa em sua cabeça estivesse fora de lugar. Além disso, ela recebeu dois telefonemas estranhos. Primeiro, durante uma reunião, na qual ela se esqueceu de deixar o celular para vibrar. A ligação, ela averiguou perturbada, vinha de seu apartamento. Ela desligou o celular, sem responder a ligação. Meia hora depois, ligaram novamente. Quando atendeu, ela só conseguiu escutar ruídos indefinidos em meio à estática. “Parem de me ligar” ela disse, e desligou.
Quando voltou para casa no fim da tarde, Susana se surpreendeu ao encontrar o apartamento bem limpo e arrumado, além de completamente redecorado. Os móveis, as plantas, os quadros e até mesmo os tapetes haviam mudado de lugar. Na verdade, “bem limpo” é um exagero, pois era possível ver no chão algumas trilhas de alguma coisa seca e com um cheiro leve de amêndoa, que fez Susana se lembrar da gosma que a fez escorregar no dia anterior. A única coisa que continuava no lugar era a televisão, mas nem parecia a mesma. Estava quase desmontada, com o tubo a mostra, e conectada a pequenos cones de papel alumínio na parte de trás.
Era óbvio quem eram os responsáveis. Susana correu até o quarto e, diferente do resto do apartamento, o encontrou bem bagunçado. As portas do armário estavam escancaradas e havia roupas espalhadas pelo chão. Além disso, tanto as gavetas do armário como as da cômoda estavam puxadas, formando pequenos degraus. Irritada, Susana se agachou para encarar os visitantes. Novamente, lá estavam eles debaixo da cama. Estavam manipulando dois sutiãs, entortando os fechos e aplicando cola industrial no meio. Onde eles conseguiram um tubo de cola industrial era um mistério ao qual Susana já estava irritada demais para dar atenção.
“O que vocês pensam que estão fazendo?” perguntou Susana, com autoridade. Até então, os visitantes ignoravam a presença dela, a qual responderam com um ronronar meio borbulhante de boas-vindas. Susana esticou o braço debaixo da cama e tirou os sutiãs sob protestos das criaturas. Uma delas até ficou pendurada em um dos fechos, mas caiu no chão enquanto Susana se levantava.
“Isso não é certo”, ela disse enquanto observava o estrago feito em suas peças íntimas. As cinco criaturinhas estavam ao redor dela, observando atentas e esperançosas de que seus objetos de trabalho fossem devolvidos. “Eu não quero mais saber de vocês mexendo nas minhas roupas”, ela disse, “entenderam?”. Os cinco se entreolharam. Um deles, o mesmo que havia oferecido queijo a Susana, emitiu um guincho afirmativo. Susana ficou mais aliviada.
“E a minha TV? Eu quero ela consertada agora mesmo”, ela ordenou. Ouvindo isso, dois deles correram até a sala, com suas patinhas batendo no assoalho. Susana foi atrás deles, seguida pelos outros três. Ela encontrou as duas criaturas se ajudando a subir no sofá (agora mais próximo da janela). Depois, um deles foi até o controle remoto e ligou a televisão, que estava sintonizada num canal chinês. Susana estranhou não apenas a imagem incrivelmente nítida, mas o fato de ela ter apenas o pacote básico da TV por assinatura. Ela pegou o controle remoto e clicou pelos canais, mas eles não acabavam. Simplesmente não tinham fim. Era como se (“mas é impossível”) ela tivesse todos os canais do mundo.
Ela olhou para os dois no sofá e os três aos seus pés, sem saber muito bem o que dizer. Era realmente uma gentileza. Ela apenas sorriu e devolveu os sutiãs colados para eles, afinal já não tinham mais serventia. “Mas nada mais de mexer nas roupas”, ela disse mais carinhosa. Eles pareciam entender. E voltaram para o quarto, deixando Susana à vontade na sala para surfar os novos canais.
Antes da noite acabar, Susana já se sentia um pouco mais sossegada. Ela tomou um banho demorado e encontrou uma pilha de toalhas limpas e macias esperando por ela no quarto onde dormira na noite anterior. Fez o jantar (um pouco de arroz à grega com filé de frango) e deixou um pedaço de queijo prato no chão junto à porta do quarto onde seus visitantes estavam. Ela abriu a porta para perguntar se eles precisavam de mais alguma coisa, mas eles não interromperam o que quer que estivessem fazendo para responder. Mesmo assim, ela ficou feliz de ver as roupas que eles espalharam agora arrumadas e dobradas em cima da cama. Então, Susana foi para o quarto vago no final do corredor, onde finalmente pôde terminar o relatório (seu chefe havia dado uma extensão de prazo para fazer a coisa do jeito certo) e foi dormir.
Mais uma vez, ela não conseguiu dormir tão bem. Foi uma noite longa, cheia de sonhos indecifráveis, mal-estares e um desconforto latente. Tanto que no dia seguinte, ela estava atrasada novamente. Dessa vez, dada a nova familiaridade com os visitantes, ela resolveu entrar no quarto e pegar uma traje mais apresentável. Ela escolheu um tailleur simples, mas elegante, passou um lápis no olho e conseguiu fazer o selvagem cabelo despenteado parecer proposital. Sentando-se na cama para vestir a meia-calça, Susana lembrou-se dos pequenos visitantes, mas ao se abaixar para ver, encontrou vazio o espaço debaixo da cama.
Teriam os monstrinhos irritantes e bons de eletrônica ido embora? “Se for o caso”, pensou Susana, “não foi muito educado sair sem dizer tchau, não que isso importe”. Ela olhou ao redor, abismada. “Cadê eles?”. O som da TV sendo ligada na sala deu a resposta. Susana os encontrou sentados lado a lado no sofá, enquanto um deles mudava rapidamente os canais com o controle remoto, decidindo-se por um documentário sobre tubarões. Susana disse oi, e eles responderam instantaneamente, mas não com muita vontade (os tubarões pareciam tomar muito da atenção deles). “Eu vou pro trabalho agora”, ela disse, “acho bom a gente conversar mais tarde”. Eles se entreolharam, e aquele que estava com o controle remoto mudou de canal mais uma vez, para uma imagem congelada de uma bacia de plástico azul. Susana entendeu bem quando eles apontaram para a tela, emitindo em uníssono um borbulhar patético, algo como “por favor, por favor, por favor”.
“Não”, ela disse, indignada. Já era um pouco demais esperar que ela fizesse compras para eles. Sem dizer mais nada, ela foi embora para o trabalho, batendo a porta ao sair. No intervalo para o almoço, Susana foi comprar a bacia. Era algum tipo especial, usado para dissolver coisas, ou algo assim. Ela encontrou numa loja de construções, mas demorou tanto que acabou ficando sem comer, e ainda se atrasou mais meia hora para voltar ao trabalho. Isso sem contar o esporro que levou de manhã, quando percebeu, chocada, que havia deixado o lap top, com o bendito relatório, em casa. E em back up. Essa ineficiência não era típica dela, por isso ainda era cedo para realmente temer pelo seu emprego, mas o resto do dia foi um inferno mesmo assim.
Quando chegou no apartamento, morta de fome, desarrumada e carregando uma bacia de plástico, Susana estava prestes a encontrar seu limite. Havia um cheiro estranho vindo do quarto, como se cabelo queimado. Susana correu até lá, mas não passou do corredor, onde tropeçou e caiu, ralando o joelho em alguma coisa metálica. Eram pedaços do telefone da sala que estavam espalhados pelo chão. Susana suspirou (“dai-me forças”), pegou do chão a bacia, que havia caído com ela e abriu a porta do quarto, pronta para encontrar qualquer coisa. Menos o que ela encontrou.
A primeira coisa que ela encontrou foi um amontoado de sujeira junto à cama. Quando ela chegou mais perto, viu que eram moscas. Centenas delas, mortas ou morrendo. Todas estavam com as asas arrancadas. A segunda coisa que ela encontrou – que elevou o nível do alarme de raiva em sua cabeça de “ativado” para “emergência” – foi a caixa onde ela guardava o seu... bem, o seu vibrador. Sim, por que não? Ela era uma mulher adulta, trabalhadora, pós-moderna, os encontros casuais nas festas de fim-de-semana nem sempre garantiam alguma coisa. Por que ela não poderia ter um vibrador? Era o direito dela! Estamos nos século 21, pomba! Todo mundo faz isso!
A terceira coisa que Susana encontrou foi o grupo de criaturinhas, envolvidas numa atividade curiosa. Três deles estavam com uma panela, que Susana reconheceu como pertencente ao jogo de cozinha que ganhou de sua mãe quando se mudou. Havia frascos de esmalte e perfume espalhados embaixo da cama, que aqueles três estavam esvaziando dentro da panela, enquanto outro mexia com uma colher de pau. Esse outro também se ocupava expelindo de sua testa uma gosma amarelo-escura, que se misturava ao que já estava dentro da panela. Tem mais. O quinto monstrinho tinha ao seu lado uma taça – de cristal, Susana pagou uma fortuna pelo jogo completo – cheia de um líquido rosa claro que tinha a aparência da combinação de esmalte, perfume e gosma expelida da testa de uma criaturinha inconveniente. E ele também estava com o vibrador. Ele se ocupava em usar o pincel de um dos esmaltes para espalhar o conteúdo da taça por toda a superfície do precioso aparelho, e depois – e isso deixou Susana com o estômago revirado – colar as pontas das asas das moscas até que o cobrissem por inteiro.
Um leve arroto saiu da boca de Susana, resultado de um dia inteiro sem ingerir nada além de café de escritório e barrinhas de cereal. Isso tirou a atenção das criaturas de suas estranhas tarefas. “Eu trouxe a porra da bacia”, disse Susana, bem preocupada em deixar clara a sua raiva no tom de voz. Um deles olhou para a panela, deu de ombros com seus bracinhos metálicos e emitiu um som que a pessoa mais atenta poderia entender como “é melhor jogar essa panela fora depois”.
Foi quando Susana viu a quarta e última coisa antes do alarme em sua cabeça passar do modo “emergência” para “iminente derretimento do núcleo, abracem os seus filhos e rezem”. Estavam atrás da panela, e ela teve que estender o braço para pegar, empurrando dois deles que estavam no caminho. Agora estavam em sua mão, mas ela não podia crer. Duas plaquinhas verdes, algumas teclas com letras e números Eram peças de seu lap top, ela tinha certeza. Susana olhou ao seu redor e encontrou mais delas escondidas atrás da porta. Uma lágrima caiu.
As criaturinhas tentaram acalmá-la, pois embora fossem bem inteligentes, não sabiam que é impossível acalmar uma semi-balzaquiana que acabara de perder seu fiel computador. “Vocês vão embora daqui agora mesmo, seus filhos da puta”, gritou Susana ao agarrar a bacia e jogar contra eles. Ela então pegou a borda da cama e, no que permitia sua força, começou a arrastá-la de volta para onde estava antes dessas pestes invadirem sua casa. Ela acabou chutando a panela, espalhando o conteúdo por todo o chão do quarto. Em pânico, os monstrinhos soltaram um grito estridente e contínuo, que fez Susana cobrir os ouvidos. Também começaram a expelir um gás espesso de suas testas, que aos poucos foi preenchendo todo o quarto.
Susana saiu do quarto tossindo e lacrimejando, fechando a porta atrás dela, mas o cheiro ainda era muito forte. “Esse é o meu quarto”, ela gritou batendo na porta, “é o meu apartamento”. Ela soluçou, engolindo o choro. “Vou ligar pra um exterminador que é o que já devia ter feito”. Mas ela estava sem telefone. Então, ao invés de ligar para um exterminador, Susana pegou o celular e ligou para sua amiga Bete, explicando tudo que aconteceu. Bete deu todo o apoio que podia (“essas coisas acontecem”). Elas ficaram conversando por mais um tempo, até Susana temer por seus créditos e finalizar a conversa. Não havia som algum vindo do quarto, mas o cheiro forte ainda impedia Susana de se aproximar sem sentir a garganta fechando. Esgotada, ela se jogou no sofá e adormeceu profundamente.
No meio da madrugada, um barulho alto a acordou. Não era nada parecido com qualquer coisa que ela ouvira antes, e nunca um leigo poderia identificá-lo como o som de cinco criaturas sendo puxadas por sutiás num vibrador alado com um motor improvisado das peças de um telefone e de um laptop. Susana foi cautelosa até o corredor, notando que o cheiro havia sumido.
Ela abriu a porta e encontrou seu quarto completamente restaurado. A cama estava arrumada e no lugar de antes, não havia resquício do estranho líquido no assoalho ou do gás mal-cheiroso no ar, e a bacia azul estava num canto, com o recibo da compra dentro dela. A janela estava aberta, e quando Susana foi fechar, ela encontrou uma surpresa em cima da cama. O relatório que ela deveria ter entregado na segunda-feira estava impresso e organizado. Ela mal podia acreditar. Na primeira folha, preso com um clipe, havia um bilhete impresso em papel cor-de-rosa. Eram símbolos pequenos que Susana não reconhecia, a não ser pelos dois últimos que se assemelhavam muito a um coraçãozinho e uma carinha sorridente.
Susana sorriu. No final, eles tinham sido legais e tentaram compensar os transtornos. Talvez ela tivesse exagerado um pouco, mas eles reconheceram que a tinham deixado brava. Com uma renovada sensação de bem estar, Susana fechou a janela, deixou o relatório em cima da cômoda e começou a tirar as roupas que usou durante aquele dia difícil. Ela afastou os lençóis e se deitou em sua cama, que tanto lhe fizera falta. Dentro de algumas horas ela terá que acordar, e o sono bem-vindo se aproximava. Seu último pensamento antes de cair no sono foi que, em parte, ela quase sentiria falta desses inéditos convidados. Claro que até aí Susana ainda ignorava as centenas de ovos que eles botaram em seu cérebro, mas já era um fato conhecido para ela: mesmo depois que se vão, seus hóspedes de fim-de-semana permanecem.

FIM

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