terça-feira, 21 de outubro de 2008

A FADA CINZA

Aparentemente, Jefferson Jericó estava à toa na vida na estação de trem, caminhando calmamente de um lado para o outro da plataforma, com seu leve gingado de malandro e a fumaça de seu terceiro cigarro naquele dia, destacando-o dos estagiários retornando para casa e dos colegiais matando aula para correr até o shopping. Porém, os tipinhos que povoam aquela estação em particular, nunca muito lotada, independente do horário, não chegavam a prestar atenção no sujeito que nunca pegava nenhum dos trens nem parecia esperar a chegada de algum passageiro, namorada ou amigo, que seja. Apenas caminhava, Jefferson Jericó, que preferia permanecer na sombra fria, longe do sol forte, sem suar dentro da camisa de flanela.

            - Seu cigarro cheira gostoso – disse a fada cinza que voava ao redor do moço, rodopiando e sorrindo.

            - Meus amigos dizem que eu devia parar.

            - Eu sou sua amiga. Não pára, não.

            Mais um trem chegava, e umas sete ou oito pessoas saíram lentamente dos vagões ao abrir das portas. Ainda não prestando atenção ao caminhante Jefferson, menos ainda elas ocupavam suas mente com a presença da fadinha cintilante que o acompanhava. Realmente, não haveria motivo para tanto, já que a torto e a direito você pode encontrar fadas de todas as formas e tamanhos por aí. Embora aquela minúscula criaturinha tivesse o diferencial de sua cor cinza, muito pouco usual para fadas, ainda era, realmente, apenas uma fada.

            - O que estamos fazendo aqui, você e eu? – perguntou a fada, repousando sobre o ombro de Jericó.

            - Estamos esperando por Godot – respondeu ele, atirando o cigarro pela metade nos trilhos já muito povoados por antigas bitucas.

            - Ah, tá... E quem é esse Godot?

            - É brincadeira, é de uma peça. Não tem Godot nenhum, não.

            - Como você sabe?

            Não apenas a cor. Na verdade, sua pele poderia ser de qualquer cor possível, até mesmo cor de pele, ninguém sabia. Mas, como a grande maioria das fadas, ela brilhava. E brilhava cinza. Jefferson Jericó conheceu algumas fadas nos últimos anos e já viu tantas outras por aí. Mas aquela era a única que ele já havia visto que brilhava cinza. Constantemente cinza. Ele nunca a questionou sobre esse fato. Também, não se importava tanto assim.

            - Olha, eu estou apenas brisando por aqui – suspirou Jefferson.

            - “Brisando”, você diz. Mas o ar aqui é tão parado. Pelo menos não está calor.

            - Não é isso. Quer dizer...

            - Eu sei – ela ria como uma criança. Jericó gostava, mas não sempre – Quer dizer ficar à toa, relaxar. Eu sei muita coisa.

            Outro trem chegava, na outra plataforma. As pessoas na janela olhavam para os dois com monotonia. A fadinha tentava lançar olhares amigáveis para cada um, mas eram tantos. Jefferson a admirava por isso, e por tantas outras coisas que ela nem imaginava.

            - Então, “brisando”... é uma gíria, não é? Como uma palavra inventada? Tem no dicionário?

            - Nunca vi – Jericó sorriu, lembrando-se de uma brincadeira que tinha com a fada – No último livro que eu li tinha um sujeito num barco. Que livro é?

            - Só isso? – ela perguntou manhosa.

            - Ele não está viajando, está lá a trabalho. E se sente muito só.

            A fada pensou um pouco sentada na cabeça de Jericó, imitando a posição de uma escultura da qual, há muito tempo atrás, havia testemunhado a concepção. Ela adorava jogar “Qual é o Livro?”.

            - Ele é velho?

            - Isso eu não digo, senão você mata na hora – ele acendeu outro cigarro.

            Ela bufou e cruzou os braços, fazendo de conta que estava pensando muito forte. Ele riu do teatrinho dela.

            - É... “O Velho e o Mar”?

            - Errou.

            - Ah, que... meleca!

            Jefferson riu alto. A fadinha tinha esse hábito de parar antes de deixar escapar algum palavrão, para substituí-lo por uma palavra boba e parecida, uma espécie de vulgaridade infantil que divertia muito seu amigo humano.

            - Tá bom, me diz que livro é!

            - O Coração das Trevas. Era fácil.

            Dava para ouvir a sirene estridente de uma ambulância ao longe. Os dois ficaram em silêncio enquanto a fadinha observava o trajeto de uma folha vermelha, dançando frenética no vento. Quando Jericó terminou o cigarro, ele jogou para fora da plataforma, tentando acertar o segundo trilho, e nesse momento a fada saiu voando rápido. Jericó pensou que talvez ela quisesse pegar o cigarro pela metade antes que chegasse ao chão, mas ela desviou para o outro lado da estação, voltando logo depois trazendo a folha vermelha, que filtrava a luz acinzentada e parecia ser feita de fogo.

            - Bonita, né? Vou pensar em alguma coisa bem bacana pra fazer com ela – ela retornou ao ombro de Jefferson e ficou a fazer cócegas na orelha do rapaz com a ponta aveludada da folha – Só ainda não sei o que é.

            Jefferson deu um sorriso e ficou olhando as pichações nos muros que saíam da estação e seguiam os trilhos até a curva. Não viu a decepção manhosa de sua pequena amiga, cuja mágica folha vermelha não pôde arrancar uma gargalhada mais sincera. Por um momento ela baixou o olhar.

            - Você não quer mesmo me contar o que aconteceu? – O rapaz ainda não olhava para ela. Ela flutuou um pouco enquanto ele se sentou num dos bancos de madeira, passando por cima de sua cabeça e repousando em seu outro ombro. Ele continuava a não olhar para ela.

            - Menina, você vem pra cima de mim com esse jeitinho carinhoso, liberando seu pozinho mágico, batendo as asinhas perto dos meus ouvidos e falando que nem criança – ela se apoiou em seu rosto, acariciando os duros pêlos de seu rosto com a diminuta e reluzente mãozinha acinzentada – Não é que eu não goste, acho até legal. Mas numa hora ou outra da conversa você começa a me perguntar da vida. “O que você acha de saudade”? “Você já quis ser outra coisa”? – ele ignorou quando ela abraçou seu pescoço, como se descansasse a cabeça no lóbulo de sua orelha – E eu juro pra você que até hoje eu não entendi qual é a sua. Não entendi o que você quer de mim, não faço idéia de onde você vem quando aparece do nada. Qualquer dia desses, eu vou dar uma de grosseirão com você, nossa amizade vai acabar, você vai sair voando com o rosto molhado de choro e eu vou me sentir um merda. Vou me sentir tanto um merda que vou pegar meu berro – ele tirou da cintura uma arma, nada de especial nela, apenas uma arma – Essa coisa feia aqui, ta vendo? Vou pegar essa arma, a minha arma, porque eu vou estar me sentindo um merda, e vou estourar meus miolos. Só pelo remorso, só porque eu fui grosso com você. É isso que você quer? Não? Então vê se pára de me fazer pensar nessas coisas. Não vim aqui pra pegar trem, não vou pra lugar nenhum e nunca vi a tal peça do Godot. Se você quer falar de livros, a gente fala de livros. Se você quer brincar de pegar folhinhas eu fico olhando. Se você quiser brincar nos anéis de fumaça que eu fizer, eu até topo. E se você quiser me perguntar da minha vida, eu te faço chorar e me mato. E é isso. Entendeu?

            Era como se ela usasse o olho de Jericó como um espelho, de tão próxima que ela estava de seu rosto. A forte luz cinza não incomodava. Era como se toda a visão dele fosse preenchida por esse estranhamente jovial tom de cinza. Ela sorria.

            - Eu já entendo a paixão, o fogo. Já sei tudo sobre isso. Quer me contar agora o que está acontecendo, Jefferson Jericó? – o som de seu nome escapava dos lábios dela como um sussurro, mas também como um eco. E o que mais ele poderia fazer?

            - Bem, problemas com meu velho, eu acho. Mas não é por isso que eu estou aqui. Sei lá, o pessoal meio que veio pra me pegar. Eu arranjei uma dívida fodida. Sabe de quem eu to falando? – ela acenou com a cabeça. Enquanto ele falava, ela voou até seu peito e guardou a folha vermelha devidamente dobrada no bolso da camisa dele.

            - Então – ele continuou – é por isso que eu tô com a arma. Nem sei o que vai acontecer, eu não devia ter entrado nisso pra começo de conversa. Eu sei atirar legal, mas nunca atirei em ninguém. Também nunca levei bala, mas dizem que dói. Será que a senhorita tem alguma coisa boa pra dizer sobre isso? Ou vai ser alguma coisa sobre duendes e passarinhos?

            - Você tem sua arma e seus cigarros. Agora só falta o amor quente de uma boa mulher e você não vai precisar de mais nada.

            Ele ficou lá sentado olhando pra ela flutuar na sua frente. Não era bem a resposta que ele esperava, se é que havia uma. Pode ser uma sensação bem peculiar, compreender um segredo sem realmente identificá-lo. Jericó poderia descrever tal sensação. Aquela fadinha, tão inocente a primeira vista, tinha um segredo. O cinza mantinha a mulher oculta. A mulher. A bela e cruel e amorosa e justa. A deusa. Mas então ele se lembrou de como ela gosta de surpreender. Essa era a verdadeira magia de todas as fadas do mundo: a surpresa, o inesperado. E ele sorriu para ela. Sorriu mesmo, mostrando os dentes amarelados. Um sorriso para uma fada é uma sentença.

Quando ela sorriu de volta, e outro trem partiu, Jericó guardou a arma na cintura e se levantou. O sol se escondeu em meio às nuvens, e sombras desconexas se projetaram no chão. Ela voou até ele e o beijou suavemente três vezes, pois um beijo triplo é outra sentença. Bem devagar, ela começou a subir.

- Pra onde você vai agora? – ele perguntou automaticamente.

- Tenho muitos encantos pra fazer. Mas você sabe que eu volto. Eu sou igual aos trens daqui, só que não tem um monte de gente viajando dentro de mim.

- Olha que eu não tenho certeza – ele riu. Os dois riram.

Ambos riram enquanto ela voava para longe, o sol reaparecia e tudo ficava um pouco menos cinza. O metal frio chamou sua atenção, como se um pedaço de gelo tivesse se agarrado à cintura de Jefferson Jericó. “Uma arma não é uma sentença”, ele pensou, “como um sorriso ou um beijo”. Uma arma é um símbolo que nada simboliza. A mão de Jefferson quando ela segura a arma, seus ombros quando ele olha para trás. E também seu rosto quando ele olha pra trás. Seus olhos. O próprio Jericó. São símbolos e sentenças que significam tudo. Medo e remorso, e outras coisas tolas. Mas por outro lado, há fadas, não é?

 

FIM

 

 

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