segunda-feira, 17 de maio de 2010

TRAGÉDIAS (com acento, porque a nova norma não entra em assunto sério)

Caiu uma menina do sexto andar. Caiu um helicóptero na avenida. Uma moça de família rica combinou com o namorado pra matar os próprios pais. Caiu o Morro do Bumba. A menina foi jogada pelo próprio pai. Um tempo atrás estava chovendo todo dia. Morreram famílias inteiras. No Morro por causa da chuva, ou na chuva por si só. Mas era tudo gente pobre, carioca. Em São Paulo e no Sul morreu muito mais gente. Gente pobre e gente rica, tudo junto. Se bem que demorou mais. O pai da menina foi sentenciado esses dias. junto com a mulher dele. Do Fernandinho Beira-Mar eu não soube mais nada.
E mataram o Glauco. Falaram um pouco do Glauco. A mídia eu quero dizer. Depois que ele foi assassinado junto com o filho. Alvejados em casa, na frente da esposa e da filha - imagina a cena. Imagina. Daí eu vi tanto político, mas tanto político prestando homenagem, todo mundo dizendo que ele era "dono de um traço caligráfico", sem ter a mínima noção do que isso quer dizer. Amigos e colegas e fãs - eu enre eles - choraram o que puderam. Fiquei pensando no Laerte também.
Mas daí pararam de falar, todos juntos. Porque começou o julgamento do pai da menina, a Isabela. Daí o que eu vi, foi circo. Gente chorando por causa da mãe, do pai e do avô e do filho que ainda não veio. Gente pichando a casa da família do pai da menina. Multidão enfurecida - um clássico - ao redor do fórum, seguindo o camburão. Gente agradecida pela sentença, porque finalmente podem seguir vivendo. E tudo muito bem filmado e twittado.
Hoje, eu nem sei o que foi feito do assassino do Glauco. Depois do circo dos Nardoni, ficou difícil voltar pro assunto. Quem chorou pela menininha indefesa e pelos sacos pretos no Morro do Bumba não vai voltar pra chorar pelo Glauco. Acho que não é tão facil chorar por um cara de classe média-alta - um Villas-Boas, veja só - meio doidão, e já de meia-idade ainda por cima, afinal a tragédia requer juventude.
Eu não conheci o Glauco. Tão pouco conheci a Isabela ou qualquer habitante do Morro do Bumba. Mas a morte do cara que criou o Geraldão, um terço de Los Tres Amigos, "dono de um traço caligáfico" - droga! - é pra mim uma tragédia maior do que todas essas, pois me afeta pessoalmente. Não sou egoísta, sou realista. Me sinto mal por todas as outras barbaridades, mas a Isabela, por exemplo, é uma incógnita pra mim. Morrer foi a única coisa que ela fez para afetar a mim ou qualquer outra pessoa. Se pensar direito, você vai ver que a morte dela até adicionou algo p´ra sua personalidade. "Me indignei pelo assassinato de uma garotinha e choro pela mãe dela". Agora, com a morte do Glauco, a gente perde alguma coisa. Essa é a chave da questão. A tragédia que vai parar na boca do povo, que é realmente chorada, é aquela que não afeta de verdade. Citei o fato de ninguém mais falar do Fernandinho Beira-Mar no começo do texto, mas podia ter falado do Sarney, do Estado Laico só na teoria, do Collor ainda estar por aí, do racismo fantasma - acredite, se a Isabela fosse negra ninguém ia falar nada. E a tudo isso, adiciono a morte do Glauco e todas as outras tragédias que nos afetam como povo e como indivíduos, e das quais preferimos não falar.

Tadinha da Isabela, né? E tadinhos de nós.