terça-feira, 28 de outubro de 2008

Amanda e o Sonho de Uma Terra sem Sol

PERSONAGENS

 

Amanda Goethe – Uma Filósofa Hermética

Televisão – Um Eletrodoméstico

Jolly Roger – Um Demônio

GM – Um Deus

 

 

Ato Único

 

Sala de leitura, cercada por estantes cheias de livros, recipientes e estatuetas. Uma janela fechada ao fundo, uma televisão no canto esquerdo, uma poltrona verde surrada com um aparelho de som ao lado no canto direito. Pergaminhos espalhados pelo chão, exceto no centro, onde está desenhado um grande pentagrama dentro de um círculo de velas.

 

 

Cena I

AMANDA, sentada na poltrona e usando uma toga – Mas que bela merda. Bem que meu pai me avisou. Esse mundo ridículo precisa mesmo é de um enema, como disse Jack Nicholson naquele filme. Para mim, é impossível continuar levando a mesma vida normal de sempre, sem pôr em prática os conhecimentos que me foram revelados. Esse círculo de velas me protegerá de qualquer coisa que exista lá fora, qualquer coisa que queira ou possa me impedir de fazer o que me vejo forçada a fazer (levanta-se e caminha até o centro da sala). Daqui a milhares de anos, quando eu tiver terminado, eu imagino o que dirão de mim, se é que vai sobrar alguém nesse mundo depois que finalmente acontecer. Dirão que sou egoísta, que sou prepotente, que sou um monstro, que sou maldita, genocida, sádica. Talvez estejam certos. Bem, pior pra eles.

 

 

Cena II – Televisão liga sozinha.

TELEVISÃO – Você é louca, Amanda. Você não sabe o que está fazendo.

 

AMANDA – Se você ligou apenas para me incomodar, então poupe seu fôlego, Televisão. Onde você estava quando eu precisei de qualquer opinião que me provasse errada? Aposto que estava correndo por alguma linha cibernética, se exibindo via satélite. Você não tinha nada pra me dizer quando eu precisei, e agora só pode me chamar de louca. Como se isso fosse me impedir (pega um dos pergaminhos do chão).

 

TELEVISÃO – Você não tem motivos. Não tem razão. Está fazendo isso para alimentar o próprio ego. Está fazendo isso para satisfazer um impulso de megalomania. Está fazendo isso para atender a um desejo de sangue. O que Papai Freud pensaria disso? Você é tão jovem e acha que o mundo pertence apenas a você.  Mas agora está ameaçando a todos nós. Eu te chamo de louca.

 

AMANDA – E eu que imaginava o que diriam de mim.

 

TELEVISÃO – Amanda, você é tão jovem e tão bela. Por que desperdiçar essa dádiva? Amanda, e o que dirá GM? Acha que ele vai ficar só olhando enquanto você age como um Hitler ocultista?

 

AMANDA – Mas Hitler era ocultista.

 

TELEVISÃO – O quê? Verdade?!

 

AMANDA, entrando no círculo de velas e sentando-se no pentagrama – Tanto faz. Nada pode invadir meu círculo. Nem GM pode me impedir agora.

 

TELEVISÃO – Disseram a mesma coisa do Titanic, e olha só.

 

AMANDA, gritando – Ah, cala essa boca, Televisão! Você devia ser minha serva! Você devia me ajudar! Ao invés disso fica me atazanando como se fosse minha mãe! Mas você não é minha mãe, e eu sei o jeito certo de te colocar no seu devido lugar (tira um controle remoto de dentro da toga).

 

TELEVISÃO – Não, Amanda! Não, não! (desliga)


Cena III

AMANDA, examinando o pergaminho – Muito bem, muito bem. Está tudo certo. O círculo, o pentagrama com o emblema de Marylin Monroe voltado para o Oeste, CD dos Mutantes pausado no aparelho de som. Agora só falta me marcar com as iniciais do tal sujeito (tira da toga um estojinho de maquiagem). Aquela TV idiota, ela acha que sabe tudo sobre mim, eu vou mostrar pra ela (molha a ponta do dedo). Nada vai me impedir, nem mesmo ter que escrever na própria testa sem um espelho (com uma mão, escreve na testa, com a outra segura o pergaminho). Ainda por cima tenho que ler essa coisa em voz alta enquanto escrevo. E eu nem falo inca-venusiano. Mas tudo bem. Eu sei que posso fazer isso.

 

 Cena IV

AMANDA, recitando – Teu nome está em mim, ó Soturno. JR está em mim, ó Jolly Roger. Ouve seu nome, quando eu grito em silencio para os Altos não perceberem. Aqui, atos de extrema repugnância esperam por ti. Aqui, eu espero por ti. Vinde a mim, que eu tanto te quero. Ouve teu nome, Jolly Roger. Eis a chave da tua prisão, dentro de mim. Vem pegar. Ao redor de mim, há um círculo. Ao redor de mim, há tudo, Jolly Roger. Apenas tu podes desfrutar desse corpo e dessa mente. Apenas tu podes me ajudar. Sofro tanto por ti, eu te amo, ó Jolly Roger. Ouve teu nome sendo docemente sussurrado. Sente meu amor. Vem pegar, ó Jolly Roger.

 

 

Cena V – Sons de gatos gemendo dominam a sala, a luz das velas lentamente diminui. Som de alguma coisa se arrastando pela sala, a luz retorna, mas o canto da sala continua pouco iluminado. Ainda é possível ver uma pessoa sentada na poltrona.

AMANDA – Eu consegui. Puxa vida, eu sou um gênio!

 

JOLLY ROGER – Quem é você? Onde eu estou? Que cheiro é esse?

 

AMANDA – Ai, que bom! Que bom que você fala minha língua. Eu fiquei preocupada, achei que teria que conjurar um demônio-tradutor também.

 

JOLLY ROGER – Você me chamou aqui? Foi você, não foi? Eu estava dormindo.

 

AMANDA – Claro que estava, amor. Por isso eu sussurrei. A gente tem uns assuntos muito importantes para conversar.

 

JOLLY ROGER – Espera aí, eu conheço você. Eu já te vi em algum lugar.

 

AMANDA – Meu nome é Amanda Goethe. O nome do meu pai era Faustus. Lembrou agora?

 

JOLLY ROGER – Seu pai também me chamou. Você era aquela menininha que ajudava ele. Faz quanto tempo? Uns dez anos? Naquela época eu tinha outro nome. Aliás, eu mudei de nome para as pessoas pararem de me chamar.

 

AMANDA – Eu sei. Foi bem difícil achar você, baby. Mas eu consegui, e agora você é meu. Espero que você tenha bastante pique pra me acompanhar, nós temos muito que fazer.

 

JOLLY ROGER – Você acha que é só me chamar aqui e pronto? Geralmente há um tipo de troca de favores envolvida. Aliás, eu nem sei o que você quer que eu faça. Nem sei se eu vou fazer. Pela aparência da sua casa, você não deve ter muita coisa pra me oferecer.

 

AMANDA – Ah, deixa de ser chato. Eu gastei quase todo o meu dinheiro tentando arranjar os documentos certos pra te invocar, não podia morar numa cobertura nos Jardins. Sem falar que eu te soltei do Inferno. Você podia até me agradecer.

 

JOLLY ROGER – Me soltou? Tava tudo muito bom pra mim no Inferno. Fiquei os últimos dez anos sem ser incomodado por ninguém. Até que uma menininha faz uma mágica fajuta e consegue me achar. Eu quero saber quem te vendeu esses papiros, por falar nisso. Não posso deixar que fiquem revelando meus nomes pra qualquer um.

 

AMANDA – Olha, se você me ajudar, eu prometo que nunca mais vai ser incomodado.

 

JOLLY ROGER – Acho difícil. Mas me conta logo o que você quer. Vamos ver se a gente resolve logo.

 

AMANDA – Antes chega mais perto, eu quero te ver melhor. Quero ver se você é igual ao que eu me lembro.

 

Cena VI – Jolly Roger levanta-se da poltrona e se aproxima do círculo, a luz das velas o iluminam, mas seu rosto continua na semi-escuridão.

 

JOLLY ROGER – Satisfeita? Podemos ir em frente?

 

AMANDA – Eu lembro que você usava uma capa e um chapéu. Eu te achava muito bonito.

 

JOLLY ROGER – O que? Agora eu estou feio?

 

AMANDA – Não! Feio, não. Só diferente. Mais casual.

 

JOLLY ROGER, sentado-se no chão, do lado de fora do círculo – Sabe que você até que é bem jeitosinha pra uma garota tão nova?

 

AMANDA – Não precisa me bajular só porque eu sou sua dona, tolinho. Além disso, eu já fiz 21.

 

JOLLY ROGER – Você ainda não é minha dona. Antes precisamos fazer o acordo. Não me peça nenhuma barbaridade, por favor.

 

Cena VII – Amanda se volta para a platéia.

 

AMANDA – Ai, é agora. Rezo a minha querida Éris para que ele concorde com meu plano. Todos os meus sonhos podem se realizar nos próximos minutos. Caso contrário tudo para o que eu trabalhei até agora vai por água abaixo. Ele é tão maravilhoso. Diferente do que eu me lembro, mas ainda sei porque eu o amo tanto. Não eram apenas as palavras do ritual, eu o amo. Ah, querida Discórdia, foi você quem fez que eu me apaixonasse pelo demônio?

 

 Cena VIII

JOLLY ROGER – E então? Quais são os termos?

 

AMANDA – Bem, em primeiro lugar, eu quero ser imortal.

 

JOLLY ROGER – Naturalmente.

 

AMANDA – Mas nada de truques. Você me entendeu muito bem. Eu quero ser imortal e continuar como estou. Nada de envelhecer eternamente, como você fez com meu pai.

 

JOLLY ROGER – Por falar nisso, como está seu pai?

 

AMANDA – Bem, eu guardo ele numa caixa. Ele é feliz lá.

 

JOLLY ROGER – Que bom. Continue.

 

AMANDA – Depois que eu virar imortal, eu queria dominar o mundo.

 

JOLLY ROGER – Naturalmente.

 

AMANDA – Depois de cem anos dominando o mundo, eu quero destruí-lo.

 

JOLLY ROGER – Naturalmente... Não, espera... O que?

 

AMANDA – Eu quero destruir o mundo.

 

JOLLY ROGER – Deixa eu ver se eu entendi. Você quer ser imortal pra poder governar o mundo por cem anos, e depois você quer destruir o mundo. É só isso?

 

AMANDA – Sim, basicamente.

 

JOLLY ROGER – Vem cá, você quer que eu destrua o mundo ou que eu te dê o poder pra destruir o mundo?

 

AMANDA – Acho que tanto faz.

 

JOLLY ROGER – Ah, que bom! Porque eu não posso fazer nenhum dos dois!

 

AMANDA – Nem vem com essa conversa pra cima de mim. Quer dizer que você não pode fazer isso?

 

JOLLY ROGER – Poder eu até posso. Mas GM não deixa.

 

AMANDA – Ora, foda-se GM!

 

JOLLY ROGER – Não fala isso, menina! Vai que ele escuta!

 

AMANDA – Ora, foda-se, foda-se, foda-se! Eu achei que você tinha culhão pra esse tipo de coisa. O que? Você quer saber o que vai ganhar? Você quer minha alma em troca?

 

JOLLY ROGER – Não existe esse negócio de alma, minha filha. Por que você acha que todo mundo tenta vender? Por que você quer fazer isso, afinal de contas?

 

Cena IX – Amanda se volta para a platéia novamente.

 

AMANDA – Dois anos atrás, eu tive um sonho maravilhoso. O mundo era um lugar sem sol, a terra era cinza, dura e fria. Não havia pessoas pelas ruas, a Avenida Paulista era dominada por uma intensa ventania e nada mais. Apenas alguns pássaros voavam pelo céu cheio de nuvens escuras. O resto dos animais havia abandonado o planeta. As pessoas haviam perecido. Restava apenas eu. Primeiro eu fiquei com medo, mas o silencio começou a me acalmar. A falta de movimento que pairava no mundo era, de alguma forma, natural. Como se o mundo do jeito que é agora fosse uma aberração. Um mundo estático e sem sol. Esse foi o meu sonho. Eu quis tanto que continuasse. Tentei voltar a dormir, mas sonhei apenas com as mesmas bizarrices psico-eróticas de sempre. Nunca mais voltei para minha terra sem sol. Desde então, venho tentando dominar esse mundo, para desfrutar de tudo que ele pode oferecer. E aí, sem remorsos, o destruirei e o transformarei na minha terra sem sol. É tudo que eu mais quero.

 

 Cena X

JOLLY ROGER – Vou te contar uma coisa. Se eu te ajudar a fazer isso, GM vai descer dos céus, coisa que ele pode já estar fazendo se ele tiver ouvido essa conversa, e vai me encher de porrada. Depois, vai cancelar nosso acordo e você vai ficar com um belo Karma pra enfrentar. Desculpa, Amanda. Mas não tem jeito de fazer isso.

 

AMANDA – Entra no meu círculo.

 

JOLLY ROGER – Como é?

 

AMANDA – Confia em mim. Entra no meu círculo.

 

JOLLY ROGER – Bem, tá… Tá bom. (entra no círculo de velas e se senta ao lado de Amanda)

 

AMANDA – Você podia entrar em mim.

 

JOLLY ROGER – O que? Te possuir? Do que isso ia adiantar? GM ia me achar e ia me arrancar de você.

 

AMANDA – Não, você podia entrar em mim pra sempre. Primeiro me faz imortal, depois me faz dominar o mundo, e então se junta ao meu corpo, deixando seu nome do lado de fora. Você me deixa usar sua força pra destruir o mundo daqui a cem anos, mas continua aqui dentro, dormindo para sempre. Ninguém mais poderia te incomodar, porque você vai deixar de ser Jolly Roger, vai ser Amanda. GM não poderia te tirar de mim.

 

JOLLY ROGER – Isso é sério? Tem certeza? Se a gente fizesse isso você não seria a mesma Amanda. Eu não me importo de deixar meu nome pra trás. Não preciso dele. Mas você é só uma menina. E mesmo que a gente fizesse isso, não tem garantia de que GM não ia dar um jeito de melar tudo. E você ficaria sem sua terra sem sol, além de perder um pouco de si mesma, porque eu não poderia mais sair.

 

AMANDA – Tudo bem, não me importo de arriscar tudo. O que importa é tentar, e saber que você vai ter um lugar quentinho pra dormir (ela acaricia seu rosto escuro).

 

JOLLY ROGER – O que você está fazendo?

 

AMANDA – O que eu tenho vontade.         

 

JOLLY ROGER – Do que diabos você está falando, menina?

Cena XI – Sons de tempestade. A TV liga novamente. A janela se abre, revelando uma cegante luz azul e um homem do lado de fora da casa.

 

TELEVISÃO – Eu avisei, Amanda. Você não vai escapar dessa agora.

 

AMANDA – Sua caixa idiota!! Você foi me dedurar?!

 

JOLLY ROGER – Pronto, não falei? Caramba, isso vai doer muito.

 

GM (gritando) – Eu sou o todo-poderoso GM. Quem ousa tramar contra minha supremacia sobre esse universo? É você, Amanda, a pecadora? O Karma espera para devorar a sua existência!

 

AMANDA (responde gritando) – Sai da minha casa, sua coisa velha e imunda! Você não pode fazer nada! Você não pode entrar no meu círculo! Eu te abandonei já faz muito tempo! Eu vou dominar esse mundo! Vou mastigá-lo e cuspi-lo fora! E quando só sobrar minha terra sem sol, não vai haver espaço pra você! Vai ter que ficar acima das nuvens, onde é frio e os outros deuses idiotas contam piadas de sacanagem!

 

JOLLY ROGER – Isso. Provoca mais o ser supremo que pode nos esmagar com um olhar.

 

AMANDA (para Jolly) – Lembra o que eu falei sobre ter culhões? Agora é a hora.

 

TELEVISÃO – Amanda, peça perdão para GM. E expulse essa fera de dentro do seu círculo.

 

GM – Ouça a voz da razão, Amanda! Você não pode se tornar dona desse mundo. Muitos já tiveram essa ilusão. Mas apenas eu permaneço. Você nada pode contra GM!

 

AMANDA – Imbecis, já faz muito tempo que eu parei de dar ouvidos para a Televisão (tira uma pequena pistola de dentro da toga).

 

JOLLY ROGER – Menina, você é mais louca do que eu imaginava. Vá em frente.

 

TELEVISÃO – Amanda, o que você vai fazer com isso? Por favor, Amanda. Lembre-se do tempo que passamos juntos, Amanda! Por favor, Amanda! Amanda, Amanda, Amanda, Amanda...

 

AMANDA – Pare de dizer meu nome! (dispara a arma)

 

Cena XII – A tela da TV explode. A luz por trás de GM fica bem mais fraca.

 

AMANDA – Acabei com sua voz, coisa velha. Vai embora da minha casa.

 

GM (falando com voz de criança) – Você me magoou muito, Amanda. Você acabou de destruir a esperança do mundo. Sem TV, nada resta.

 

AMANDA – Vai chorar no ombro de um padre, velhote. Até nunca mais.

 

Cena XIII – A luz por trás de GM se apaga.

 

JOLLY ROGER – Bem, parabéns. Você queria destruir o mundo e conseguiu.

 

AMANDA – É mesmo, né? Pena que não consegui ser a rainha de tudo durante um século. Mas acho que não perdi nada. Você ainda pode me fazer imortal?

 

JOLLY ROGER – Posso, posso. Você ainda pode me oferecer um lugar pra dormir?

 

AMANDA (rindo) – Vamos lá fora para ver o Não-Sol. Depois, eu serei sua cama e seu cobertor para toda a eternidade.

 

JOLLY ROGER – Você é muito estranha, Amanda.          

 

AMANDA – Cala a boca, amoreco. E deixe seu nome por aí mesmo.

 

(As velas se apagam)

 

FIM

 

 


Um comentário:

Duquesa do Sétimo Tormento disse...

Hummm!!! Eu quero conhecer esse demônio Jolly Roger. Interessante,..., muito interessante! A Duquesa vai amar tê-lo como convidado em vosso aposento.