terça-feira, 21 de outubro de 2008

ESTRANHO DESTINO DE UMA GAROTA NUMA NOITE ESTRELADA



            Olhe para o céu numa noite qualquer. Talvez não haja nuvens, e você possa ver as estrelas brilhando forte, mais forte do que você lembra de já ter visto. Olhe fundo para o céu, sentindo-se mergulhar na escuridão acima, atravessando limiares invisíveis com o seu olhar. Deixe de sentir a terra firme debaixo de seus pés. Esqueça-a enquanto o espaço infinito se revela ao seu alcance.

Talvez você dê de cara com o viajante. Uma consciência antiga e intangível, nascida no coração de uma estrela ou no útero de uma nebulosa. Um filhote do cosmos ancestral, desprovido de qualquer forma, linguagem ou intenções que uma mente humana como a sua possa compreender. Ele passa por você, ignorando sua presença. Ele se dirige para a terra firme que você abandonou.

Não olhe para trás. Apenas imagine o viajante adentrando a atmosfera, silencioso e frio como um cadáver. Somente um risco de luz cortando o céu noturno. Ele é um cometa se aproximando de um campo vazio, uma planície ou um pasto. Não há ninguém lá para lhe dar as boas vindas. Mas imagine uma garota, não mais do que uma criança, correndo assustada pela noite. Imagine o ar frio fazendo o seu rosto molhado de lágrimas doer. Há alguém, então, para saudar o viajante. Violentamente, ele atinge o chão, assustando as vacas – se fosse um pasto e lá houvesse vacas. A garota sente o chão tremer sob seus pés e tropeça. Imagine ela caindo.

Ela vê uma luz fraca vindo de mais adiante, onde algo parece ter caído do céu. A luz possui muitas cores, mas nenhuma que ela possa reconhecer. Ela se aproxima da luz. O viajante não chama por ela, mas ela vai assim mesmo. Agora imagine a coisa dentro da luz, a coisa que a garota vê. Uma coisa de um milhão de olhos, mas que não possui olhos. Braços que não são braços, mas que a envolvem. Imagine um beijo que não é um beijo. E imagine a luz mais brilhante de repente sumindo.

A garota volta pra casa, caminhando calmamente, sem lágrimas nos olhos. Ela é abraçada pela mãe quando entra pela porta. A mãe se assusta com o abraço. Seu pai grita com ela por ter fugido e diz que devia lhe dar outra surra. Imagine a garota taciturna, sem mostrar qualquer reação diante das palavras do pai. Ela vai para seu o seu quarto, sem dizer nada.

Nos dias seguintes, talvez um medo comece a se espalhar. Primeiro na casa da garota, depois na escola, entre seus colegas, e então em toda a cidade. Imagine as pessoas da cidade identificando o medo, tentando ignora-lo sem sucesso. Ninguém imaginaria que a fonte do medo fosse a garota, mas eles sentiriam o sangue correndo gelado em suas veias quando ela passasse por perto, sempre caminhando, calada e inexpressiva. A garota bonita, com olhos bonitos, boca bonita e cabelos bonitos, cuja soma das partes não parecia estar certa. Na casa da garota, seus pais acabam se acostumando com uma vida quase insuportável. O pai tenta a todo custo evitar qualquer contato com a filha, e a mãe chora sozinha por não conseguir se comunicar com ela. Imagine o casal brigando. Discutindo rudemente enquanto a garota fica sentada em seu quarto, no escuro.

Imagine os anos se passando. Os pais tiraram a garota da escola, mesmo que suas notas tenham melhorado. Ela começou a assustar os professores e os outros alunos. Agora ela fica trancada no quarto, onde ninguém pode vê-la. Às vezes, um médico vai visitá-la, quando ela começa a recusar comida e quase não dorme mais. Mas os médicos não gostam dos resultados que seus testes inúteis revelam. Eles não gostam das coisas no sangue da garota. Então eles também param de vir. Logo, a cidade aprende a conviver com o medo, e a garota começa a ser esquecida.

Um dia – imagine – a mãe entra no quarto da garota e descobre que ela sumiu. Ela implora que seu marido faça alguma coisa, que chame a polícia, que procurem por ela. Mas ele a proíbe de dizer mais. Ele espera que a garota nunca mais volte. Passam-se dias. Talvez se a polícia tivesse sido contatada, se um grupo de busca tivesse sido organizado, talvez eles encontrassem a garota sentada na margem de um rio numa propriedade vizinha. Talvez no meio do mato, agarrada a uma árvore. Ou encolhida num buraco de terra, como um animal hibernando. Eles fugiriam de medo ao vê-la passando por um processo similar, mas ainda bem diferente, ao de uma cobra trocando de pele. Eles a veriam sem entender que cada célula de seu corpo estaria se alimentando de substâncias secretas, contidas no ar, na terra e na água, mas que a pobre ciência humana jamais foi capaz de identificar. Eles não a viram. Mesmo assim o medo começa a se espalhar para fora da cidade, por todo o mundo.

E quando cada pessoa no planeta estivesse sofrendo com o medo, sempre olhando para trás quando caminhasse na rua, chafurdando patéticas em inexplicáveis terrores noturnos, ela retornaria. Imagine o povo da cidade encontrando a garota, nua, coberta por uma grossa camada de sujeira, enquanto caminhava por aí, da mesma forma que fazia anos antes. Eles chamariam seus pais, mas eles já não estavam na antiga casa. Relutante, um médico a examinaria e descobriria que ela está grávida. Fruto de um estupro, ele pensaria. Imagine a garota sendo entregue ao Estado. Imagine o medo daqueles que tiveram que cuidar dela, alimenta-la e tratá-la. Imagine o dia em que, depois de uma gestação estranhamente curta, seus bebês finalmente nascem.

Não imagine os bebês. Você não pode imaginar os bebês dela.

Anos se passam. Ela continua tendo bebês, e eles não param de comer. Seus dejetos têm efeitos estranhos na atmosfera, fazendo a luz assumir aspectos perturbadores. O ar e a água têm um cheiro doce e nauseante. À noite, as estrelas continuam brilhando, cada vez mais intensamente. Não há mais pessoas, e assim, não há mais medo. Há apenas fome insaciável e selvagem, e a garota. Ela caminha por um campo, uma planície ou um pasto. Talvez o mesmo onde ela caminhou anos antes. Sentindo seu útero se contorcer com as novas e famintas vidas dentro dele, ela olha para as estrelas e espera. Talvez ela espere por algo que possa assustá-la mais uma vez, que finalmente lhe cause maravilha, ou aquela inédita sensação de arrebatamento. Imagine a garota sentada no chão, olhando para o céu, ignorando o som constante dos urros furiosos de seus bebês.

Você pode apenas imaginar, pois você não está lá. Há muito tempo você deixou aquele mundo, encarando aquele mesmo céu. Você agora é o viajante. Logo, você encontrará aquilo que a garota tanto espera. Talvez.



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