Tá demorando, mas tá saindo.
“Vou ter que matar um rato”, ela pensou. “Vou ter que matar um rato sozinha”. Num pulo, Susana se levantou. Ela abriu a gaveta de talheres e pegou uma faca de carne, mas mudou de idéia quando imaginou a sujeira. “E eu teria que jogar a faca fora”. Então ela largou a faca e pegou uma colher de pau, o que não serviria nem para assustar o menor dos ratos. O som continuava dentro da geladeira. Depois de dois passos lentos, ela pensou que não havia motivo para continuar criando um clima de tensão e marchou decidida até a porta branca coberta de fotos e imãs, abrindo-a.
Susana não viu um rato. Não dá para dizer que ela realmente “viu” alguma coisa. Depois que ela abriu a porta da geladeira algo realmente saiu de lá. Foi tão rápido que Susana não poderia dizer que viu com o canto do olho. Ela pensou tê-la sentido roçar no seu tornozelo direito quando a coisa passou. Pequena e acinzentada como um rato deveria ser, mas não era um rato e Susana sabia disso, mas sua mente só conseguiu resumir aquilo na sua idéia anterior de um rato. Então, era um rato.
Enojada, Susana estremeceu. Quando virou para trás e procurou pelo chão da cozinha, ela não viu nada. Nem na sala, apesar da bagunça dificultar uma visão satisfatória. Susana decidiu que estava incapaz de enfrentar aquela situação antes de tomar uma ducha, o que a ajudaria a resgatar suas sinapses das festividades da noite passada. Depois de terminar seu café e comer uma torrada com manteiga – sem tirar os olhos do chão, cautelosa com o possível roedor – ela se dirigiu ao banheiro, tirando o vestido que não era dela e deixando-o cair pelo caminho. Ela ainda segurava a colher de pau.
Durante o demorado banho, Susana decidiu que cuidaria do problema do rato sem perder a calma. Ela arrumaria o apartamento, mantendo os olhos e os ouvidos bem abertos. Caso o pequeno invasor mostrasse seus bigodes, ela rapidamente usaria sua colher de pau. Também seria uma boa idéia substituir a colher de pau por uma vassoura, ela pensou. Enquanto se secava, Susana pensou que algum dos seus amigos deveria ter ficado para ajudar na arrumação, já que a festa dessa vez foi especialmente agitada. É o tipo de comportamento que ela poderia esperar do loiro desconhecido, mas não de seus amigos mais chegados. Tal pensamento foi interrompido pelo descobrimento do que foi deixado em sua privada. “Essa gente não tem educação nenhuma”, ela ralhou para si mesma, e deu a descarga, feliz por ter aliviado sua bexiga durante o banho.
Ao sair do banheiro, Susana caminhou pelo corredor enquanto enrolava a toalha no corpo. Pensando em ligar para a Bete e perguntar quais foram os últimos acontecimentos da noite passada, ela foi direto para o seu quarto. Quando chegou lá, notou que a cama estava fora de lugar. Ao invés de estar junto à parede e ao lado da janela, aproveitando a bela vista da cidade que está praticamente inclusa no condomínio, alguém arrastou a cama até a outra parede, perto da porta.
Essa era nova. Em nenhuma das festas anteriores houve alguma mudança de decoração. “Talvez o viado do feng shui tenha aparecido de novo ontem”, pensou Susana depois de entrar no quarto e antes de pisar com seus pés descalços em alguma coisa molhada no assoalho. O escorregão era inevitável, mas Susana tentou se segurar na beirada da cama. Infelizmente, não conseguiu evitar o impacto, caindo desengonçada e terminando deitada meio de lado no chão. Havia duas trilhas de uma estranha gosma incolor no assoalho, começando no lugar onde a cama estava antes e terminando nos pés da cama, onde ela se encontrava agora. Foi então que Susana os viu.
Eram cinco, debaixo da cama. Estavam reunidos numa roda, como se sussurrassem um segredo, mas a única coisa que compartilhavam entre si era um pedaço de queijo prato que Susana tinha guardado na geladeira. Eram pequenos e magros, de corpinhos esguios que se sustentavam com pernas longas e finas, aparentemente feitas de metal. Os cinco estavam olhando para Susana com seus olhinhos cor-de-rosa, enquanto Susana olhava de volta, da mesma forma sem tomar ação nenhuma, em silêncio.
Um deles se virou para os outros e, depois de emitir um som curto indistinguível, começou a caminhar lentamente na direção de Susana. Quando percebeu a aproximação da criaturinha, Susana estremeceu, engatinhando de costas até a outra parede, sem tirar os olhos da coisinha pequena e estranha que avançava em sua direção. Durante esse percurso, a toalha que envolvia o corpo de Susana ficou para trás, mas diante da peculiaridade da situação, ela não se deu conta. Agora, ela era uma garota nua sentada no chão contra a parede do quarto, com uma toalha enrolada nos cabelos, com um monstrinho de pernas finas vindo em sua direção. E isso tudo num momento bem inoportuno de sua vida social e profissional. Diante disso, Susana paralisou.
A criaturinha, percebendo o súbito estado catatônico de sua anfitriã, não pensou duas vezes e pulou em cima do joelho de Susana, continuando até parar no estômago dela, muito firme devido à aeróbica três vezes por semana. Por um tempo meio desconfortável, eles ficaram se olhando, em silêncio. De perto, a criaturinha era ainda mais estranha. Tinha uma pele escamosa, de um cinza brilhante, vestia um tipo de colete de borracha preto com hastes de metal ao redor, de onde saíam os braços e pernas metálicos, Tinha também um tipo de respirador na boca e ao redor do pescoço, com três pecinhas giratórias na frente, que chiavam bem baixinho. E óculos escuros. Bem pequenos.
Susana pensou o quanto se sentiria melhor se estivesse com sua colher de pau – ela poderia esmagar o monstrinho e sua gangue de invasores com apenas alguns golpes, e ainda teria tempo de arrumar a casa, pintar as unhas e decidir o que vestir no dia seguinte. Esse pensamento foi interrompido pela criatura, que emitiu um som metálico, meio chiado, mas com uma conotação bem animadora. Embora fosse completamente diferente de qualquer som que já ouviu, Susana o percebeu como algo parecido com “desculpe o incômodo, sabemos que você é uma mulher forte e independente, que consegue equilibrar uma carreira bem-sucedida na área de recursos humanos com uma aparência feminina, provocante sem ser vulgar, e segura de si mesma”. Ou alguma coisa parecida.
Em suas pequenas garras metálicas, o monstrinho segurava o pedaço de queijo prato. Ele o dividiu em duas partes e estendeu o pedaço maior para Susana, fazendo um chiado borbulhante adorável que só poderia ser traduzido como “espero que não se importe por termos roubado seu queijo, mas estávamos com tanta fome, e sua mãe estava completamente errada quando proibiu você de ir ao cinema com o Tiago nove anos atrás”. Susana pegou o queijo, sem tirar os olhos da criaturinha, e esboçou um sorriso.
Como que satisfeita com o resultado, a criatura pulou da barriga de Susana para o chão, retornando para seus amigos debaixo da cama. Susana se levantou, finalmente percebendo a própria nudez, e correu para pegar a toalha. Ela se cobriu rapidamente, mesmo que as coisas debaixo da cama não parecessem se importar, então ela tirou a toalha e pegou um roupão de dentro do armário, sem tirar os olhos preocupados do chão perto da cama, de onde leves chiados saíam quase inaudíveis. “Eu... Então eu vou ficar no outro quarto”, ela disse, e pegou seu lap top de cima da cômoda. As criaturas não responderam. Susana passou o resto daquele domingo sem entrar no quarto, e não conseguiu se concentrar no relatório que precisava fazer. Ela dormiu mal naquela noite, no quartinho no final do corredor.
Na segunda de manhã, Susana acordou mais atrasada para o trabalho do que de costume.
Continua... Hahaha, achava que já era o fim?
segunda-feira, 29 de setembro de 2008
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