quarta-feira, 13 de agosto de 2008

HÓSPEDES

Essa é a primeira parte de um conto q estou escrevendo.

“Um hóspede, como um peixe, começa a feder após três dias”, ou algo assim. Na verdade, Susana não dá muita atenção a essa frase. Ela nem tem certeza de quem foi seu autor. Bem Franklin, ou talvez Guido Cavalcanti, não importa. Susana está acostumada com hóspedes. Até gosta deles. Susana gosta da companhia. Todo sábado ela se reúne com os amigos mais chegados para um pequeno momento de descontração que logo leva a uma noitada de prazeres descontrolados regados a álcool e música de todos os tipos. Ela se recorda, ainda um pouco envergonhada, de mais de uma ocasião em que acordou sentindo falta de uma peça de roupa indispensável. Também é comum a destruição acidental de propriedade alheia, a profanação de segredos inconfessáveis, e a realização de contato sexual rápido e pouco satisfatório para ambas ou muitas partes.
Mas no geral, essas festas são muito apreciadas por Susana e seus amigos. E para proteger os interesses e as coleções de CDs de cada um, foi combinado que a realização dessa deliciosa soirée ocorreria em uma casa diferente a cada semana. Em um sábado eles se encontrariam na casa de Santo, em outro no apê da Bete, em outro no sobradinho da Sandra, e ocasionalmente no apê de Susana (Susie para os amigos). Mas há detalhes que acabam ficando de fora em qualquer acordo. Ninguém mencionou, por exemplo, que um churrasco no quintal com piscina do Marcos é preferível nas noites quentes de verão. Vai sem dizer que é mais gostoso passar as noites frias de inverno no apê da Bete, a auto-proclamada especialista em queijos e vinhos. E qualquer festa no apartamento de Susana está fadada a se tornar um acontecimento maior, já que é o mais espaçoso (quatro quartos), munido de um excelente home theater e uma varanda com uma vista bem invejável. Dentre os amigos, Susana é quem ganha o melhor salário, e como mulher solteira e balzaquiana, ela sabe como gastar seu dinheiro. Por isso as roupas mais chiques, o apartamento maior e a vida amorosa que deixa a desejar.
Enfim, as festas no apê de Susana acabam atraindo gente que ela nunca viu na vida. Amigos de amigos de amigos que chegam de carona, não param de fazer piadas, bebem muito e desmaiam no banheiro. Mas Susana não liga. Esses sábados são tudo que ela pode chamar de vida social, e alguns domingos limpando vômito da pia do banheiro são um pequeno preço a pagar. Então, se ela ainda está de pé quando a noite acaba e a maioria de seus amigos vai embora, ela não vê problema em deixar um ou outro passar a noite. O metrô só funciona até certo horário, afinal de contas. E não é certo para uma anfitriã acordar um convidado que não está em condições de se vestir sozinho. E é verdade que ela fez bons amigos desses hóspedes de domingo. Gente que ela mal conheceria se a festa fosse na casa de outra pessoa. Eles tomam café com ela – talvez um chá para curar a ressaca – e até ajudam a arrumar a bagunça. E logo esses amigos de amigos tornam-se simplesmente amigos. “Hóspedes de festa são muito bem vindos”. E assim vai.
No último sábado, foi novamente a vez de Susana acolher os amigos. E foi uma festa particularmente boa. Bete trouxe umas garrafas de algum “Chatô” ou algo do tipo, César veio com os primos do interior (gente boa), e Lilian trouxe a música de uma bandinha pouco conhecida nuns CDs que ela gravou pra Susie. Simple Bass. Eles tocam ska, aparentemente. Lílian já namorou o baterista, que também compareceu, mas agora são apenas amigos. E claro, as presenças de sempre trouxeram amigos de fora, todos animados pra conhecer Susie, a “amiga de todo mundo”.
Depois de algumas horas, a pia da cozinha já estava cheia de louça suja, um canto da sala foi reservado para as garrafas vazias, três ligações de vizinhos reclamando já tinham sido feitas, Lilian estava no quarto de Susana, transando com o baterista da Simple Bass, e Susana teve uma discussão feia com Fabiano. Mais algumas horas se passaram, e um careca maconheiro amigo da Bete estava ensinando todo mundo a dançar brake, Susana já havia feito as pazes com Fabiano e agora estava transando com o baterista da Simple Bass (“adoro sua música”), Lílian estava na varanda com os primos do César atirando bombons no meio da rua – por algum motivo – e mais quatro ligações de vizinhos nervosos foram feitas, uma do prédio ao lado. Boa festa.
Em algum momento, quando Susana sentou-se no braço do sofá enquanto a ex-namorada da Márcia contava sua experiência no curso de Criminologia, ela percebeu que já estava próxima de seu limite químico. Em sua mão direita estava um copo de vodca com limão já na metade, em sua mão direita um cigarro quase no filtro, e em algum lugar no meio disso, o seu coração batia forte e sua cabeça começava a girar. Naquele momento, ela olhou ao seu redor e, intrigada, constatou que não conhecia nenhuma daquelas pessoas. Bete, Santo, Lílian e o resto da turma já haviam ido embora ou se afastado para alguns do quartos, e a sala tinha ficado cheia apenas de amigos de amigos. O resto da noite sumiu de sua memória.
Susana acordou no domingo com a luz do sol entrando pela varanda e ofuscando sua visão. Ela estava jogada no sofá, segurando um copo vazio, cercada por silêncio. A sala parecia ter abrigado uma matilha de cães mal-educados, mas não havia mais ninguém lá além dela. “Nada de hóspedes dessa vez”, ela pensou, embora ainda precisasse checar os quartos. Enquanto tentava identificar o gosto ruim em sua boca, ela notou um barulho vindo da cozinha, como uma leve batida dentro dos armários, um tipo de bagunçar indistinguível. Meio desengonçada, ela se levantou e cambaleou até a entrada da cozinha, ignorando o fato de estar usando um vestido que ela nunca viu antes.
“Ah, desculpa, pensei que você ainda estava dormindo”, disse um loiro baixinho que entrou na sala de repente. Susana virou-se assustada antes de chegar à cozinha e tropeçou nos próprios pés, caindo sentada no chão. O rapaz, um amigo da Fátima ou da Letícia que tinha um nome hebraico que Susana não conseguia lembrar, se apressou em ajudá-la. Ele explicou que havia caído no sono em um dos quartos e que Fátima ou Letícia teria que acorda-lo antes que todos fossem embora. Agora ele estava atrasado para o aeroporto, o hospital ou o templo (Susana não escutou direito, e “francamente é pedir um pouco demais que eu mantenha tamanha atenção aos detalhes em uma manhã de domingo com ressaca”). Ele pediu desculpas por não ter tempo de dar uma ajuda e arrumar o apartamento, mas ele já estava atrasado demais. Ele se despediu rapidamente, agradeceu pela noite divertida, repetiu que estava atrasado, e saiu sem fechar a porta.
Susana, estarrecida, saiu para o corredor e ficou encarando o loiro baixinho enquanto ele esperava pelo elevador, causando um desconforto óbvio no rapaz, que apenas sorria, evitando contato visual. Quando o elevador chegou, ele suspirou aliviado. Antes que ele entrasse, Susana se lembrou. “Tem mais alguém aqui?”, ela perguntou. O rapaz disse que, depois de acordar, procurou por Fátima ou Letícia nos outros quartos, mas não encontrou ninguém além dela. “Ah, eu vi que você gosta dos caras do Simple Bass. Eles são legais. Desculpa, estou atrasado”, ele repetiu pela última vez, antes da porta do elevador fechar. Susana ficou parada ali, como se tentasse lembrar de alguma coisa importante, até que decidiu voltar para dentro, dando de ombros.
“Estou atrasado, estou atrasado”, imitou Susana. “Alice nenhuma vai querer saber desse coelho branco”. Ela foi até a varanda e fechou as cortinas. “Cara chato”, ela pensou. “Judeu”. E ficou um pouco surpresa consigo mesma. “Café”, ela pensou a seguir.
Susana foi até a cozinha pronta para fazer um bule de precioso café, seu único combustível para a faxina que estava por vir. “Que sacanagem”, ela murmurou, ao encontrar a porta da geladeira aberta. Ela ficou imaginando se foi o loiro quem esqueceu daquele jeito, e fechou ela mesma. “Eu nem gosto de Simple Bass”, ela pensou enquanto fazia o café. Sentada à mesa, ela tomou goles pequenos do conteúdo quente da xícara em suas mãos, e pensou que foi uma pena não ter ficado ninguém legal ou interessante para compartilhar o dia seguinte. Ela ouviu a geladeira fazer um barulho seco, e pensou ser o motor ou algo assim. Ela se lembrou da reunião que teria na terça-feira, e que ainda precisava memorizar alguns tópicos. A geladeira fez outro som, mas dessa vez ela não pôde confundir. Era como se alguma coisa lá dentro estivesse batendo na porta. Ela olhou apreensiva para o eletrodoméstico, imaginando o maior e mais grotesco bicho possível. Um rato, talvez. Ela odiava ratos.
“Vou ter que matar um rato”, ela pensou. “Vou ter que matar um rato sozinha”.

Continua.

Um comentário:

Leandreis disse...

Aposto que não é um rato!